28 de mar. de 2005

A face piegas da paixão

O beijo prendeu a noite na boca. Você silenciando suas pequenas dores no meu pescoço e eu me fazendo de ninho para o teu carinho. Sabe que há um lugar no meu pescoço que é seu? Não é lavrado em cartório, não há documento de posse ou garantia contra defeito. É seu pra você ser, sem ter. Ter é o primeiro passo para perder. O meu pescoço está aqui, pra você ser. Ser você, nele.

27 de mar. de 2005

Estilhaços de Montreal


O chão molhado escorregou minha queda. Dos cinco dedos, houve um que me traiu. Na mão, é preciso maioria absoluta quando se quer agarrar qualquer coisa. Levantei apagando arranhões. O olhar dos outros sobre meu sangue fez minha ferida. Só doeu quando ela me pediu perdão. Era uma sexta de muito frio e bastante silêncio. Entrei correndo na pequena casa no centre-ville, onde a janela aberta era um quadro com pássaros vermelhos. Parou de falar sozinha pois estava começando a discordar demais, de si mesma. Fazia tanto frio que parei de sentir. No inverno, toda casa é um pouco sua, um sorriso anônimo no metrô é uma lareira, o primeiro abraço num desconhecido já é excesso de intimidade. Ela falava um francês ardido. O roteiro previa uma comédia de erros, um pastelão de imigrante perdido, até encontrá-la disposta a rabiscar de improviso. Lembro que só percebi que o quadro com pássaros vermelhos não era sua janela aberta, quando encostamos na parede e ele balançou, balançou, até cair. Ainda esbocei uma pausa para consertar. Ela segurou firme. Mais um fiapo de francês ardido. Disse que preferia a janela fechada.Minha melhor lembrança daquele inverno, foi verão.

23 de mar. de 2005

Sempre que vou a matemática, não volto.

Ela olha o cartão verde, a foto, a marca fatídica do dedo. Ele invade-se. Não poder ficar só em seu próprio nome é como traumatizar a solidão. Ela percebe. Eles tem muitos anos de diferença. É possível saber com exatidão quantos anos separam, mais de uma década, faz a conta. Mas quantos anos temos de semelhança? Quantos anos nos aproximam?
Ela observa, encantada. Não há nenhum número em seus olhos.

Prevert et Gainsbourg

"Aimer, ce n'est pas se regarder l'un l'autre, c'est regarder ensemble dans la même direction."
Antoine de Saint-Exupéry

Cette chanson était la tienne. Quatro olhos, dois olhares, o mar. Ele não transborda, permanece. O mar não aceita interlocutores.

22 de mar. de 2005

Sinopse de um amor bobo

Desculpe, mas só posso lhe amar nas horas vagas.
Tornou-se um vagabundo.

Breve descoberta

Um dia descobriu que podia viver mais do que marcava o relógio. Mais do que permitia o calendário. Mais do que limitava sua idade.
Está quase morto.

21 de mar. de 2005

Esboço

Uma parte da maturidade se constrói com dívidas. As outras partes são notas promissórias.

20 de mar. de 2005

Vestígios

.Se cada vez que a gente sobrevivesse, ganhassemos uma vida, poderiamos ser quase imortais.

.Confesso que já procurei na farmácia um suícidio sem efeitos colaterais, nos outros.

.Minha vaidade está quase toda em meu nome. Quando anônimo, sou muito humilde.

.Quando tinha 16 anos procurei uma profissão que não precisasse trabalhar. Encontrei, mas tive medo de fazer o vestibular ao ver a concorrência.

.Ao não ser batizado, meus pais me permitiram qualquer Deus. Há um carnaval deles em mim.

.Às vezes, um elogio é o pior crime que se pode cometer ao ego do outro. Não há legítima defesa.

Para Lamenha



"Com medo ninguém consegue escrever ..."
Clarice Lispector


Suas circunstâncias lhe relevam a vida. Sim, é em relevo que caminha. E seduz. Acho que ele está sempre tentando se seduzir, cada vez que não consegue, acaba por seduzir o outro. E o fato é que quando seu corpo se move, para qualquer que seja a direção, sua sensibilidade já foi e voltou algumas vezes, fazendo pouco caso da lentidão do corpo. Passou algum tempo dando voltas pelo quarteirão. Ele gostava de brincar com as figuras geométricas, trajeto redondo em torno do caminho retangular. Sobreviveu enquanto pôde, depois partiu de lá. Partiu dele. Nunca partiu, mesmo, de fato. Deu voltas.

19 de mar. de 2005

[...]

A loucura não faz tudo que diz.

Cartas - Diálogos sem travessão II

"Porque meu pé veio no final da minha perna, não ando pelo meio."
Nathalie Quintane


Vou sumir. Para onde? É uma noite despedida de indagações. Me leve junto. Se não te tenho, aqui, agora, junto, como te levar, onde quer que seja, junto? Você disse que era uma noite sem indagações. Sim, despedida de indagações - mas é preciso pagar o FGTS e seus pormenores burocráticos. Não seja tanto, agache-se, aproxime-se, estou lhe concedendo sonho. Um sonho nunca cumpre tudo que promete. Este promete tanto, que se cumprir um beijo, já terá realizado tudo, e o resto permanecerá desimportante. Não sei ter medo, preciso que você me ensine, preciso desse instrumento. Eu poderia ensinar a qualquer um, mas, quando estou falando com você, quando estou pensando você, sentindo você, sou contagiada pela sua falta de medo. É verdade que tenho receio, é verdade que desconfio. Mas não temo. Preciso ir embora de mim. Pode ficar. Fique em mim enquanto eu viajo. Quero suas marcas em cada canto, seu cheiro em cada detalhe. Quero poder voltar e sobreviver com a lembrança de que você me teve, ainda que eu não estivesse. Você está me dando mais chaves do que portas. A verdade é que só há uma porta. E não é bem uma porta. É uma caixinha, aquela, preta. E o que faço com tantas chaves? Com tanto desejo, com tanto encantamento que você me dá? Essa é uma noite despedida de indagações. Não há mais pormenores burocráticos, estamos fálidos até que algo novo possa acontecer. Não posso aceitar. Ao ser injusto consigo mesmo, você acaba sendo comigo também. Não posso pensar tanto para dar cada passo, não sou assim, você sabe que eu não tenho medo, e seu sorriso é meu risco. Preciso ir. Você vai voltar? Nós, em fato, nunca nos encontramos, como vou voltar para onde nunca estive? Feche os olhos, quando puder, volte para aquele lugar que inventamos. Talvez, numa dessas vezes que você abrir os olhos, você acabe de retornar onde nunca esteve antes. Você me inaugura a cada vez, mesmo não nos conhecendo. Você estréia meu coração com cada intimidade que compartilhamos. Preciso ir. Um beijo.

Cartas - Diálogos sem travessão I

"La realidad es un sentimiento."
Adolfo Navas

Você acredita? Não me corrompa. Responda como quem vive. Desconfio. Me incomoda ser assim tão...você. Explique-se. Você vai mesmo traçar esse diálogo em linha reta? Correndo o risco de perder o elo e a fala de quem é quem? Sim. Me perco. Os travessões não irão legitimar nada. Estou aqui numa madrugada estranha, tudo que não for igualmente estranho irá me parecer outro dia. Não quero outro dia, não agora, nesse instante, pego os minutos com força, quero mantér-me ereto, sereno, apaixonado, encantado, sonhando, brincando de dar palavras para seu sorriso. Não exagere. Sim, mas também não posso negar-lhe. Provenho de um mundo seco, em que cada dose de umidez é venerada com fervor. Você veio de mundo diametralmente oposto, vem de lá, do Sul, do vinho, do frio, sabes o que é um chão navalhado pelo sol? Sou fragmentado. Minha vida é fragmentada, meus desejos são fragmentados, meu amor é fragmentado, minha morte também será, e está sendo, fragmentada. O segredo? A costura. Não, não falo do velho clichê da colcha de retalhos. Mesmo não tendo nada contra o clichê - essa fonte que não seca. Não vá além, preciso ser capaz de pelo menos ter sua sombra. Minha sombra? Sim. Você amaria minha sombra? Não. Pausa. Ela esperava outra resposta. Ele esperava outra resposta. O mundo esperava outras perguntas. Não vê que o amor é o equívoco também? É falho, tem rugas, defeitos, marcas, sinais. Não fale de sentimentos que ainda não sabemos entre nós. Sim, é verdade. E do que você quer que eu fale? O que posso falar? Não tenho como me apropriar de nenhum sentimento pois não sei nada entre nós. É o brilho dos meus olhos a cada frase sua digitada? É a capacidade que você tem de exalar o calor do teu sangue mesmo através dessa máquina fria? Quero lhe batizar em minha vida. Não sou católico. Nem ateu. Fui abençoado por pai-de-santo, pintado em aldeia pataxó, sou isso. Não fuja do assunto, retorne ao meu ego, preciso da minha auto-estima. Seremos isso? Momento da realidade, agora? Não, falo de verdade. Seremos isso? Uma possibilidade de reestruturar a auto-estima um do outro, com elogios, com a imaginação de sentimentos com as metáforas das sensações e a subjetividade do desejo? Não posso lhe responder. Não sabemos responder. Se tivessemos respostas, ou parariamos aqui agora, ou largariamos os compromissos imediatos e nos endividiariamos, nesse exato momento, para uma viagem para a metade do caminho. Ou talvez apenas seremos capazes de lidar com esse ímpeto até o dia que vier ao Brasil, nos encontraremos talvez já sem tanto entusiasmo - cada um jogando no outro a culpa por não ter sido louco suficiente para cometer a paixão em golpes demorados e deliciosos com suaves mordidas, beijos coloridos e intermináveis. Ou talvez não, isso tudo realmente seja único, e, não importa quando, mas, iremos nos encontrar. E não importa onde, mas iremos nos abraçar. Não importa como, mas de alguma maneira iremos nos amar. A arte da suposição pressupõe certa ciência: a matemática das probabilidades. Relevo. Ao contrário do que diz a física, no escuro eu também consigo enxergar cores. Enxerguei você. E não é escuridão esse intermédio? Essa internet, esse orkut, esses e-mails, não estamos pintando com cores num meio escuro - que de tantos pixels e células luminosas, do excesso de luz, provoca certa escuridão em seus emissores-receptores rádio AM/FM música romântica numa madrugada paulistana, sim, é Roberto Carlos, o que esperar essa hora na rádio? "Cada minuto é muito tempo sem você, sem você/Os segundos vão passando lentamente, não tem hora pra chegar/ Até quando te querendo, te amando, coração que te encontrar / Então, vem que nos seus braços esse amor é uma canção".

Navalha

Adêmiro, tem precisão toda essa dor?
[Adêmiro chora]
Tá vendo o chão aí todo navalhado de sol, quieto, calado, cê arranca um toco e ele nem nada. E você, me acentue essa desgramêra!
[Adêmiro limpa as lágrimas]
- Tião, se eu me navalhar e virar chão você promete num rancar toco de mim?
[Tião pasmo.]

Justificativa

Queria um lugar pra ir guardando as coisas que vou deixando aqui, ali, escrevendo por aí, frases, pequenas sombras, iluminuras, essas coisas, que, muitas vezes não cabiam no lugar onde escrevo junto com mais dois amigos, o Cambalhotas. Eu espero mantér isso aqui silencioso, íntimo. Mas, ora pois, isso é internet. Então deixa pelo menos eu curtir o ínicio.