29 de mai. de 2006

micropolítica do desamor

O líquido é tão rubro, intenso, brilhoso. Há um vigor em seu caminhar. Jamais alguém poderia achar-lhe corrosivo.

Era tanto amor que derramou.

23 de mai. de 2006

espoir

"Em vida quando o esperávamos ele aparecia?
Pois agora quando desesperamos ele também não desaparece."

Mia Couto, "Um Rio chamado Tempo Uma casa chamada Terra" (P. 183)

14 de mai. de 2006

vendaval da mente - II

Ele reuniu pequenos sopros para medir isso que lhe dirigia os passos: esse profundo nada. Apesar de não ser táctil ou vísivel, era capaz de mover, derrubar algo ao passar, locomover sua própria existência.

Percebeu, suspirando, como se nesse movimento aspirasse um pouco de seu próprio fio condutor, o que lhe acontecia.

Sua vida era isso: como o vento, um vazio que se move. As vezes até dessarrumando um pouco por onde passa.

13 de mai. de 2006

pequena nota sentimental sobre meu avô

O homem mais sincero que conheci em nenhum momento admitiu verbalmente que povoara minha infância com um certo tipo de fantasia e invenção que, em visão mais cética, poderiamos chamar de mentiras. Esse homem entendia a sinceridade como uma relação de amor e respeito com o que dizia - suas memórias inventadas, ficcionadas, porém retratadas ao seu interlocutor atento e diminuto com o carisma da veracidade. Assim, até mesmo como entende o próprio Houaiss em sua definição, o que ele entendia por sincero era uma maneira de exprimir aquelas histórias "sem o artíficio nem a intenção de enganar ou de disfarçar algum pensamento ou sentimento". Minha formação primordial no universo da criação foi justamente por esse caminho - o avô, o homem sábio que descontraidamente trafegava pela paternidade de maneira irresponsável, podendo chegar ao âmbito da amizade e cumplicidade com destreza e facilidade.

Quando meu acesso aos códigos verbais se deu, e, posteriormente, meu fascínio pelas possibilidades inventivas que poderiam surgir a partir do meu mínimo domínio sobre aquela linguagem escrita, minha reação foi de profundo êxtase e certa familiaridade. Ao inventar seu passado, e me contar suas peripécias pelo sudoeste árido baiano, meu avô estava me ensinando uma literatura cheia de saliva. Nossos diálogos - com ou sem palavras - ganharam um novo valor depois que li Guimarães Rosa. Olha aqui, grafado com a magia da língua escrita, aquela poesia torta que nos animava junto ao álcool fluído de nossos copos. Nossos corpos.

Gosto de anotar o motivo, cada vez que me lembro de meu avô. Mesmo depois de morto (ou como diziamos, "depois de ido"), ele ainda é a minha maior frequência literária. O motivo de hoje foi Mia Couto. É impressionante como o avô mariano de "Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra" o traduz. Meu avô inventava histórias de um passado que não existiu, assim, de fato, existindo somente na palavra. Eu continuo a inventar histórias de um avô que não existe mais, assim, de fato, existindo somente na minha memória.

4 de mai. de 2006