26 de jun. de 2006

180

Incansáveis, estavam ali novamente dando voltas em torno de si mesmos. Então perceberam que seus si mesmos não estavam mais no mesmo lugar quando retornaram, inviabilizando a completude da volta. Alguém blasfemou dizendo: se não foi volta, foi um rodopio. Um homem velho com rosto terrento de sempre cair ao peso de seu próprio tempo advertiu velhosamente: deixem de gangúnias, tempo é a pele do vento e arde nesse sol. Se a volta não se completa, que esperamos para dar uma reviravolta?

O homem velho morreu antes de completar 180º.

Era o Verbo

Fabrício Carpinejar - Sua obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?
Vicente Franz Cecim - Esse é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós nele.

25 de jun. de 2006

se mente

"- É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já que é um bem que transferimos, se transferimos a espera de gerações futuras, pois há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.
- Ninguém vive só de semear, pai.
- Claro que não meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo, por outro lado, do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida."

Raduan Nassar em Lavoura Arcaica.

23 de jun. de 2006

samaritano

A dor diagnosticou rapidamente o médico: incurável.

dia logo

Ele
Sempre me encantei com seu olhar de menina-moleca. Só não podia imaginar que ela ainda costumava brincar. Trocara bonecas e bonecos por pessoas.

Ela
Nunca pertenci completamente a ninguém. Ainda custo a aceitar que você passou a ser apenas alguém.

14 de jun. de 2006

aliança



Um anel prata. A mão solteira do corpo contorce pelo brilho da prata. Fiel como o corpo, está presente em cada desânimo, cada carinho rídiculo ou gesto arrogante. As unhas mal cortadas atestam o esmero pela displicência, o repouso da energia em outras atividades, certo descaso com os dedos até pouco tempo virgens. Aquele anel de prata rasgou-lhe a tristeza com a rara súplica do gozo na primeira transa: permitiu novamente a força ausente naquela mão. Atesta neste dedo errante a mais consistente criação já feita por essa mão: o amor.

7 de jun. de 2006

Inventou o inventar e ventou

Pois já foi nosso tempo de línguas várias, línguas vindas, oriundas, descidas e subidas, línguas de muitos paladares e muitas distintas palavras. Mas aqui, com o tempo, toda essa infinidade de línguas múltiplas precisou lamber-se umas as outras, misturar-se, inchar os sentidos, alargar nomes de coisas, somar palavras. Aqui toda aquela riqueza de línguas de fala tornaram-se em sotaques. Transformamos assim nossos dialetos em sotaques. E aí ganhou-se esses jeitos todos de falar, mas não veja mal nisso: não corrompem a língua, de contrário, a seduzem, nesse caminho traquejoso, com ritmos, entonações novas para aquelas mesmas palavras de antes.
Explicação de Seu Feidão sobre a língua

Na cabeça de Vidigal Primeiro, dono daquela Fábrica no Brás, sotaque era um despautério, um pecado, uma lascívia. Era palavra sendo desnuda, desavergonhada, sofrendo e contorcendo-se pelos limiares da boca, arisca, afoita, anasalada, às vezes quase sexuada. Vidigal achava aquilo um completo despropósito. Não permitia sotaques ali, na fábrica. Era como se alguém mostrasse suas vergonhas e ao falar passeando pela fábrica, desfilando seu sotaque, era como se desfilassem suas vergonhas, seus próprios corpos desnudos. E aquilo agredia de alguma maneira, não se sabe como, a crença e o respeito dos demais. Vidigal não permitia o sotaque. Vidigal queria o respeito imperando na Fábrica. Na Fábrica se falava a língua seca.

5 de jun. de 2006

-edos

a Vida

"Primeiro, desejamos uma mulher que nos faça sentir a Vida.
Depois, desejamos uma mulher que nos faça esquecer a Vida.
Por fim, queremos apenas estar vivos."

Desabafo do Alfaiate de Vila Longe - Mia Couto* em "O outro pé da sereia"

Mia Couto estará comentando seu novo livro e presitigando o lançamento no Brasil, nessa terça-feira (06/06) no Sesc Vila Mariana, 20h.