30 de mai. de 2008

participação


Em Belo Horizonte, conheci Fran. Ele poderia ter o apelido de Chico, como tantos Franciscos, mas é impossível olhar para o seu rosto e imaginar chamá-lo de qualquer outro jeito. Mais tarde talvez isso mude, mas não tem como olhar pro seu rosto e não advinhar que se chama assim. Fran. Ele passou algum tempo me chamando por outro nome. Eu, infelizmente contaminado de adultice, insistia em corrigi-lo. Percebi só depois que o nome era só um espaço sonoro oco - importante era o afeto que ele tinha me batizado de chamar. Lidar com criança é um teste impressionante de ser você mesmo demais. Não deve ser fácil. Mas é mágico. Tentei ser eu mesmo com esforço num final de semana em BH. De presente, trouxe um punhado de boas lembranças e situações.
No carro, ele iniciou repentinamente a falar sobre sua maneira de ver as relações. Começou dizendo que "mamãe participa com Tiago. Dandan participa com Sussu." Foi corrigido que esse último enlace já não existia mais. Então olhou pra mim e com um sorriso maroto foi certeiro: E você participa com quem?
Respondi aos sorrisos que eu estava sem participação no momento.

Trouxe isso, entre outras coisas. Não sai ileso.

perigo e medo

O lugar mais perigoso de São Paulo pra mim é ao telefone com minha avó. Sobre seus olhos, intermediados na sua voz imperativa e baiana, me divirto com todo o perigo que a cidade possui resumido em suas preocupações, receios, alertas, pedidos para Senhor do Bomfim me proteger. Em agosto completo seis anos em São Paulo, e quase oito que sai de Salvador. Mas seu discurso ao telefone é o mesmo, nem mesmo se preocupa em atualizar desgraças nas notícias do jornal. Através do receio dela é que percebo o perigo de São Paulo. Não há palavra minha que amenize. Poderia lhe dizer que os perigos que me amedrontam realmente estão em qualquer lugar. Medo, mesmo, tenho do que faço ou deixo de fazer com minha vida. E são os momentos mais intensos: quando viver vira orquestrar seus próprios medos. Uma sinfonia estranha com um solo de coragem no piano, ao final.

Ás vezes penso em sair de São Paulo. No Brasil não me imagino hoje morando em nenhum outro lugar. Logo vejo que antes de sair de São Paulo, preciso aprender a sair de mim. A ir embora de mim. A pé de preferência. Quando esse dia chegar, o título desse blog perde o sentido, e a vida dará sua cambalhota triunfante.

Medo.

27 de mai. de 2008

só pra constar

De onde vem essa ânsia por preencher o vazio daqui?
O que me incomoda mesmo é que estar vazio me trás a sensação de estar cheio de tudo. Cheio de nada. A barriga cheia de vento.

Preciso alimentar minha fome.

14 de mai. de 2008

vai saber

Tenho cura demais para pouca ferida. Isso machuca.

indecisão é decisão interna, pra dentro.

"A resposta mais rápida é vista como a certa. Um alívio para seguir com o trabalho, e mostrar clareza aos amigos. E os amigos bem-intencionados não vão nos ajudar. O que disserem a respeito do que aconteceu não será suficiente, o amor é um dialeto restrito aos dois que se amam.
Não reparamos no principal, Amor. Não reparamos que quando amamos o tempo não faz a mínima diferença. Amar será sempre recente: será ontem. Anos juntos e a sensação é que foi ontem. Anos separados e a sensação é que foi ontem. Ontem, ontem. Não há anteontem no amor. As lembranças mais longínquas já são corpo.
É uma pena, Amor, que somos mais decididos do que amorosos. Amar é não decidir. Decidir é terminar sempre."

Fabrício Carpinejar

11 de mai. de 2008

antes do princípio das coisas


"A questão não é saber se o amor nos aconteceu. Isso é tão relativo que o silêncio é melhor. Percebe-se melhor. Naqueles dias eu achava que não éramos nada, tu e eu. Podíamos dormir juntos. Podia sentir o teu suor sobre o meu peito, os teus ruídos na casa de banho, a forma como mastigas a pastilha elástica, elegante, por vezes entreabrindo a boca num sopro que se aproxima de um suspiro. Podíamos rir e chorar, contar as desventuras da adolescência, as maldades paternas, tudo. Podíamos sem consequências, porque nada do que te disse era verdade e, por isso, me poupava nas palavras, para não te castigar com tantas mentiras.
Tudo o que passámos, naqueles dias, não era definitivo, não tinha coordenadas futuras, seria, por fim, o crescendo que iria morrer de repente. Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor iria desfazer. A ilha congelada no nosso abraço. Nos teus pensamentos era tudo o que fazia sentido. Eu tinha um prazo. Uma vida à minha espera, um regresso feito de poucas memórias. Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.
Sabia exactamente o vermelho de sangue que te iria escorrer da alma, como uma tinta, como um salpico de dor demasiado forte para o teu corpo magro.
Não tenho coração, pensava nas noites em que ficávamos a olhar o reflexo da lua no atlântico.
Tu contavas a história do duende prateado que tem de acender as luzes todas do mar da tranquilidade. Ele que prometeu ao sol que pode dormir sossegado. Haverá sempre uma luz para espantar as coisas más. Quando me fui embora, não deixei morada. Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber."

morder-te o coração é uma pequena caixa de ferramentas para afetividade defeituosa. Mas essas pequenas chaves de fenda em forma de palavras não irão consertar-te em nada: surgem para inutilizar-nos de nós mesmos, um pouco, ainda que por poucos instantes.
No vigor da escrita da portuguesa Patrícia Reis, não há como puxar o ar, num desejo do fôlego, sem que junto não entre para os pulmões esse invisível - porém tão sentido - frescor da comoção de amar. Independente do contexto em que se esteja - casado, sofrendo, solteiro, apaixonado, vadio - as histórias entrecortadas de pequenos relatos - ele e ela, vão se encaixando e encaixotando-se sem piedade de nos abarcar. Penso que há ai um apontamento para ressignificar a dor amorosa - que não está somente nos corações partidos, mas da falta de inteireiza que tem nos afligido nesses tempos.
Uma surpresa. O livro é impecável, nas cores, na capa, nas páginas com pausas negras. Na contracapa, sorri debochando o aviso que Agualusa faz: "Este (pequeno) livro é precioso (e raro) e deve ser manuseado com cuidado: contém emoções."


"A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer. A felicidade tem que ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que me não falta nada, quase nada."
Em nome da terra, Vergílio Ferreira (citado no livro da Patrícia Reis)

foto: Tiago Lima

1 de mai. de 2008

Um Brasil Sertanejo Ilustrado Caboclo Negro Tapuiá

A Pedra do Reino é um vigoroso mergulho audiovisual: algo que transcende qualquer mídia, seja tv, seja cinema - aqui chegou como dvd. É cuspe de cores sertanejas, sussurro ousado em pleno reino das palavras,  artesanato de idéias visuais, epopéia para um futuro arcaico do folclore nordestino, renascimento riscando de luz a irreverência fundamental da identidade brasileira: somos palhaços e reis. Não acompanhei pela tv, nem mesmo suas repercussões na mídia na epóca, mas é óbvio o seu "fracasso" diante do ibope. E não acredito que Luiz Fernando Carvalho tenha passado desapercebido por esse risco. Suassuna, na contracapa do dvd, diz que "se o sucesso não for igual ao seu êxito (do romance), isto somente se deverá ao fato de que a obra de Luiz Fernando Carvalho esta a frente do nosso tempo - por sua ousadia, por sua coragem (...)".
Não gosto muito dessa expressão "a frente do seu tempo". Mas entendo que determinados movimentos - nas ciências, nas artes, nas filosofias - tenha um tempo de digestão e maturação que irrompe o tempo cronológico. O fato é que, a mim desinteressa uma análise da obra enquanto produto televisivo. Numa chicotada única, me embriaguei dessas 4h36min da mais pura cachaça audiovisual brasileira: uma epifania de simbolismos, apontamentos certeiros sobre um nordeste rico de imagens, de idéias, de palavras, de cores, de crenças, e rico das misturas de todos esses elementos anteriores. Suassuna, com todas as ressalvas que alguém possa ter com ele, emplacou em seu romance a pedra fundamental de um sertão majestoso, um caldeirão cultural que vai de negros, índios, portugueses, mouros, entre outros. Luis Fernando Carvalho trouxe a verve de sua experiência em Lavoura arcaica (também chamado de hermético e incompreensível por alguns críticos), alimentou-se dos anseios grandiosos, de uma ópera nordestina de Glauber Rocha, respirou como de costume a verve literária de Suassuna, degluitiu uma farta iconografia de simbolismos e folclores do sertão, digeriu e inventou A Pedra do Reino. É um projeto sem cabimento. Um tormento. Há quatro dias sonho que sou amigo de Quaderna, e participo firmemente da Academia dos Emparedados do Sertão da Paraíba. 

Um carnaval de sentidos e sensações. E dar vazão ao que há de palhaço e ao que há de majestoso, em cada um de nós.