29 de jun. de 2010

Eu posso ser feliz

Um homem gordo acordava todo dia e chegava na varanda do seu apartamento no centro e gritava: "Eu posso ser feliz."
Se algum vizinho ou transeunte reclamasse, ele repetia. Era capaz de repetir insistentemente para reagir a cada reclamação. Reativo, até quando o céu estava acinzentado, ele tomava as dores. E repetia o grito.

Isso ocorreu durante anos e aquela história corria os quarteirões. A rua do gordo que pode ser feliz.

Ontem o gordo, já meio emagrecido, com uma cara visivelmente abatida, chegou na varanda, olhou para os lados e para o céu. Ontem fez um solzinho até. Ziltino da padaria, lá embaixo, deixou o pão na chapa e colocou a cara pra fora, estranhando a ausência do grito.

O gordinho se jogou lá de cima. Nem gritou nada.

O silêncio engoliu a rua. Estava todo mundo impactado, sem saber o que dizer, como reagir. Nem o Tião piadista conseguiu improvisar uma anedota a tempo. Calou-se. Quem estava ali podia jurar que o silêncio nunca mais iria embora.

Até que uma senhora velhinha, a vizinha do gordinho, chegou na varanda dela e gritou: "Eu também posso ser feliz."

28 de jun. de 2010

Beijo no guardanapo

Ela deu um beijo no guardanapo, sorriu com a suavidade de quem sabe usar um batom rosa e partiu. Uma espécie de cartão-de-visitas, com uma certa intimidade. Numa fração de instantes, aquele jovem deixara de ser o geniozinho tímido e muito doido e surgia na condição de profundo especialista em mulheres bonitas e interessantes.

No guardanapo, não tinha sequer um numero, uma dica, nada escrito. Ela mudou a vida daquele jovem pra sempre, mas eles nunca mais se encontraram. Ela preferiu apostar tudo num pequeno gesto. O encanto virou um rastro na memória.

18 de jun. de 2010

Jovem, velho, morto.

"Nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe."

Em A Caverna de José Saramago.

Bilhete

Sílvia,

O coração é feito de bilhetes. Por mais que seja organizado em romances, televsionado em novelas ou espetacularizado em filmes. Esses, nada mais são, que bilhetes. Tive vontade de te escrever exatamente porque não sei quase nada sobre você. Nesse espaço que pouco sei, preenchi com seu nome e o carinho da sua admiração. E inventei um bilhete para esse anonimato que me reconhece.

Minha vaidade é uma companheira ausente. Ao ser tocada, sua ausência se desespera. Permanece a delicadeza do toque. Obrigado pelos olhos.


17 de jun. de 2010

Aipim

Aipim curava os meninos com música. Isso, digo eu, que insisto em adesivar bonito o que nasceu sem intenção pra vestir-se com cola. Ele surgiu de uma família de músicos, dos tipos diversos, daqueles com escola até os descolados. Mas ninguém falava "música". Existe um olhar dentro da família de Aipim que significava isso. O olhar anunciava e o corpo mexia bonito, de leve, rasteiro, introduzindo a primeira intenção de dança. A dança é o corpo sendo música. É no corpo que a música faz trampolim. E é sobre ele que ela desce quando volta do vôo.
Um menino chegou desavisado com a doença de não gostar do seu pai. Todos diziam que era doença incurável, maldita, e pior falando, era uma lepra calibrosa que botaram no menino, como se ele fosse a origem e o sintoma da desgraciosa doença. Aipim respira um ar pequeno, possui uma humildade quando divide o ambiente com mais alguém. O menino chegou querendo quase não precisar mais existir. Como se ele tivesse passado a infância inteira correndo de esconde-esconde e acabara de chegar. Ainda guardava um pouco do cansaço da primeira vez que chorou na vida. Aipim passou a mão na nuca do menino e disse: Você gosta de amanhã?
O menino tinha tudo para nem entender. Mas nem entender já era demais pra ele. O menino respondeu: Quando eu penso que amanhã não vai ter pai, gosto de verdade.
Aipim fez o olhar. Iniciou a dança. E compartilhou com o menino um sonzinho, que começava simples na boca, movia pelos braços, que pediam um batuque, desses de leve.
"Amanhã nunca tem pai. É sempre filho. Mas diga aqui entre nós todos dois - Tem palavra esse desgostar?"
O menino mostrou umas feridas de sempre. De ontem, anteontem, de anos atrás. É de sempre antigo, ainda há o de sempre que quer ser.

Aipim batucou um pouco mais. E finalizou:

- Ainda te sobra um bom punhado de amanhãs pra serem gostados sem feridas. A dor parece que vem pra aquietar a gente. Mas é traquinagem dela. A dor vem é pra gente pegar impulso.


16 de jun. de 2010

Pode e não pode

"Não saber para onde ir, pode. Deixar de ir para onde se sabe, não pode."

Ela segurou aquele bilhetinho escrito com letras pequenas e bem acabadas, letras de fôrma, numa tentativa de não revelar nenhum traço da personalidade do autor. Eu vi seu rosto angustiado, tentando encontrar um lugar seguro para repousar o olhar. Durante alguns instantes, achei que ela tinha acabado de receber a pior notícia do mundo. No instante seguinte, ela abriu um dos maiores sorrisos que eu já vi na vida, largou o bilhetinho na rua e saiu correndo. Correu, correu, correu. Lá longe, avistei ela dando um abraço em alguém.

Recolhi o bilhetinho e rapidamente me veio o desejo de que pudesse acontecer a mesma coisa comigo.

Voltei pra casa com o bilhete.

5 de jun. de 2010

Cores


As cores possuem o poder vertiginoso da transformação. Uma verdadeira revolução acontece cada vez que elas se encontram em prol de um ideal.