17 de fev. de 2011

incomodar

Ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience.
Aquele que veio ao mundo para não incomodar, não merece nem respeito, nem paciência.

René Char

15 de fev. de 2011

Sangue

Criei a música ali, na hora, observando os suspiros, testando as palavras na boca da Karina.
O vídeo registra o processo. A música inacabada, nós embriagados. Porque o sangue é nosso guia. Fico no canto parado, observando e sentindo, mas no final a câmera e a vela me descobrem.

7 de fev. de 2011

Um dia minha mulher

Eu erro no ínicio e no fim. Nunca consegui admitir isso. Pouco tempo, você já me arrancou essa confissão. Talvez esse seja momento para confissões. Adoro seu nome. Imaginar chamá-lo pela manhã me dá esperança e força. Eu troco o fim pelo ínicio. Eu tento confundir os dois, misturo os vocabulários. Ao querer alfabetizar o ínicio, desse dialeto do fim, me alimento de uma língua que carrega eternidade. 

Eu sei o seu cheiro, eu decorei seu tato, interpretei seu cabelo, há uma arquitetura sólida formada somente com os desenhos da sua boca e das suas mãos. Respiro, e não há mais razão, já temo não passar de ano, perder nessa matéria, tropeçar no dia da prova. Me repetir desse instante letivo. 

Deixar de lado as imperfeições poéticas que você me imaginou, para recolher as reais imperfeições, parece ser um caminho longo. Escrevo, agora, querendo terminar logo. Mas isso é meu desejo tardio, minha certeza precoce, de que  ainda te escreverei muito.

O corpo treme, cansado, sobrevivente da devassa do álcool na noite anterior, mas reuniu forças para vir aqui. Eu queria arrumar as coisas na minha cabeça, mas percebi que não tinha nada a te dizer. Tinha o mundo inteiro para nos contar, queria que a escrita organizasse algo. Não há o que ser organizado.

Eu sinto a confusão. Não há entrelinhas aqui. Eu queria apenas gostar de você. Para ser mais leve, para ser compatível com o tempo presente. Mas, não. Eu quero construir essa confusão contigo. Com seu sorriso, com sua voz, com suas palavras. 

Eu sempre escrevo para inventar quem eu sou. Hoje comecei a escrever para te esquecer do que sou. 

O ínicio e o fim são ilusões. Somos sempre dentro.

1 de fev. de 2011

O pai

Todo aniversário é um nascimento e um enterro. Alguém nasce, alguém morre. E esse alguém é um só. Hoje nasce meu pai, hoje morre um pai que já deixou de ser. Hoje renasce meu avô, hoje morre novamente meu avô. Estamos todos aqui, e em virtude da comemoração - e porque na minha memória afetiva eu mando em tudo - até o pai abriu exceção e está bebendo. Meu avô é uma veia que me liga até meu pai. O álcool é uma veia que me liga até a memória do meu avô. Não é bonito, apenas é. Aqui, embriagados, cantamos. É aniversário de nós mesmos. Lá fora, o tempo parece que é outro. Na minha casa, existe um canto que caberia meu pai. Perto dos livros, da janela, quando entra uma luz de lua pela madrugada. Existe um canto que caberia meu avô, já pela varanda improvisada, ali onde dá pra colocar o copo no batente. Todo lugar onde dá pra sentar e apoiar seu copo é um lugar sagrado. Eu sou esses dois. É o termômetro de mim. Se a casa tem espaço para os dois, então tem espaço para mim. Meu avô e a cerveja quente, eu e o whisky sem gelo, meu pai e a paternidade. Porque foi essa a sua embriaguez, suas ressacas, foi esse o único estado alterado de consciência que ele resolveu se permitir com alguma plenitude. Por não saber direito como ser pai, ele resolveu embriagar-se da paternidade. Foi por isso que chegamos até aqui. A gente não sabe. Está todo mundo aqui, sem saber. A gente bebe, sente, troca olhares, e repete o processo. Entender nunca fez parte. É dos poucos momentos em que nós três, tão racionais, nos permitimos não entender. É aniversário da parte de mim que mais progride, que mais vasto caminho tem a percorrer, e duvida de qualquer preguiça em ser. Meu pai. Nos juntamos, os três, pra conseguir carregar o nó desse vínculo. E somos todos, o pai. Mas hoje, só um deles estreia nova idade. 

Saravá!