24 de abr. de 2012

Gengiva

Então eu entrei nesse lugar onde todas as pessoas pareciam saber usar bem o fio dental e só era permitido subir ao camarote quem tinha feito clareamento nos dentes. Tentei me aproximar das garçonetes, imaginando uma pretensa identificação de classe, mas mesmo elas tinham um hálito delicioso e sabiam introduzir citações inteligentes entre a oferta de uma bebida e outra. Eu não me senti inadequado, porque não tenho a mínima ideia de qual seja a sensação de adequação. Sempre achei esse papo de 'senso de pertencimento' um psicologismo simpático para amenizar o inevitável. A boca é um cemitério pouco sagrado por onde a maioria absoluta dos desejos humanos precisam passar em algum momento. Uma espécie de Marginal, com o agravante que o desejo só aceita o odor que emana da sua própria equação. Os desejos não são paulistas acomodados que vivem, nascem e se reproduzem sem precisar sair da sua zona. Não demorou muito até que as pessoas percebessem que eu não deveria estar ali. Por mais que eu tentasse, eu não conseguia fazer um olhar perdido e me vitimizar, numa tática para alcançar alguma piedade e consequentemente um ínicio de papo. Eu estava deslumbrado com aquele desfile de sorrisos cheirosos, aquelas bocas com uma capacidade tão grande de falar, mesmo coisas completamente desinteressantes. As garçonetes já estavam apostando quanto tempo eu sobreviveria ali. Não consegui saber em quanto estava o bolão, mas eu sabia muito bem que ninguém ali ganhava menos de cinco mil reais para desfilar com bebidas, sorrisos e uma beleza, dessas de deixar qualquer produtor de casting da Califórnia de pau duro.
Eu já estava sucumbindo, quando encostei num móvel bonito, onde só quando vi o barman percebi se tratar da quina do bar. Achei que se eu pegasse o celular para checar o twitter e preencher o tempo, seria como pedir penico. Eu geralmente não sou competitivo. Só comigo mesmo. E aquele era um momento desses. Até que ouvi essa voz, que tropeçava pelas palavras quase como se não fosse necessário completar a frase para ser compreendida:
- Você também tá aqui por obrigação.
Não foi uma pergunta. Então minha reação foi um sorriso tímido e um mergulho profundo nos olhos dela. Me senti um índio pataxó com a coragem para olhar tão fundo nos olhos do outro, sem o desvio natural da vergonha e da civilidade. Ela desviou uma, duas e na terceira percebeu que já era tarde, e não dava mais tempo para voltar pra superfície.
- Você é do marketing? Da produção? Ou da agência?
Eu fui sincero. E respondi: Ainda não sei. Finalmente ela sorriu. Eu sou engraçado quando consigo uma distância de pelo menos cem metros da intenção de ser. O sorriso foi uma recarga de oxigênio no mergulho. Numa festa repleta de sorrisos odontologicamente perfeitos, o destaque foi uns dentinhos separados à la Bardot. Até que arrisquei: A minha obrigação essa noite era te encontrar.

Acordei no dia seguinte. Com ela do meu lado da cama. Não consegui esconder meu semblante assustado, quase um ato reflexo. Ela me explicou que um segurança que estava me observando, me bateu na nuca, e eu desmaiei. E que do hospital, ela tinha resolvido me trazer pra casa dela, culpada de alguma maneira pela situação. Levantei, escovei os dentes e nunca mais voltei pra casa. Esqueci por completo de toda a vida que eu tinha tido até então.

Nos casamos, eu me tornei um dentista renomado e o resto é pura invenção.

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