13 de mai. de 2006

pequena nota sentimental sobre meu avô

O homem mais sincero que conheci em nenhum momento admitiu verbalmente que povoara minha infância com um certo tipo de fantasia e invenção que, em visão mais cética, poderiamos chamar de mentiras. Esse homem entendia a sinceridade como uma relação de amor e respeito com o que dizia - suas memórias inventadas, ficcionadas, porém retratadas ao seu interlocutor atento e diminuto com o carisma da veracidade. Assim, até mesmo como entende o próprio Houaiss em sua definição, o que ele entendia por sincero era uma maneira de exprimir aquelas histórias "sem o artíficio nem a intenção de enganar ou de disfarçar algum pensamento ou sentimento". Minha formação primordial no universo da criação foi justamente por esse caminho - o avô, o homem sábio que descontraidamente trafegava pela paternidade de maneira irresponsável, podendo chegar ao âmbito da amizade e cumplicidade com destreza e facilidade.

Quando meu acesso aos códigos verbais se deu, e, posteriormente, meu fascínio pelas possibilidades inventivas que poderiam surgir a partir do meu mínimo domínio sobre aquela linguagem escrita, minha reação foi de profundo êxtase e certa familiaridade. Ao inventar seu passado, e me contar suas peripécias pelo sudoeste árido baiano, meu avô estava me ensinando uma literatura cheia de saliva. Nossos diálogos - com ou sem palavras - ganharam um novo valor depois que li Guimarães Rosa. Olha aqui, grafado com a magia da língua escrita, aquela poesia torta que nos animava junto ao álcool fluído de nossos copos. Nossos corpos.

Gosto de anotar o motivo, cada vez que me lembro de meu avô. Mesmo depois de morto (ou como diziamos, "depois de ido"), ele ainda é a minha maior frequência literária. O motivo de hoje foi Mia Couto. É impressionante como o avô mariano de "Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra" o traduz. Meu avô inventava histórias de um passado que não existiu, assim, de fato, existindo somente na palavra. Eu continuo a inventar histórias de um avô que não existe mais, assim, de fato, existindo somente na minha memória.

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