7 de ago. de 2006

A guerreira anônima contra o Trocadilo



Estamira quase não é ela mesma: É este corpo cansado, negro, envelhecido e entristecido pelo 'trocadilo' cruel da vida, esse ser da espécie homem par. Esse corpo parece observar a verdadeira Estamira, que está além, que está em todos os lugares: A palavra firme, a lógica imbatível para organizar o caos do mundo dentro do seu vocabulário surpreendentemente rico e assertivo, a clareza mística e lúcida que inventa sua subjetividade em contexto tão adverso e a pertinência às vezes tão agressiva que sua visão crítica repousa.
Marcos Prado é verdadeiramente um fotógrafo, mais do que um cineasta. E somente um fotógrafo como ele poderia ter feito esse filme, poderia ter tido a paciência e a perspicácia para realizar este documentário. As palavras de Estamira poderiam ser por si só fonte de reflexão. Mas a imagem que Prado escolhe para abraçar essas palavras são envoltas da mesma matéria abstrata ("A criação toda é abstrata. Os espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato.") que compõe a fluência 'estamírica', o místico e o sagrado.
As reflexões que ela suscita são de uma amplitude assustadora: da questão dos lixos, consumo desenfreado nas metropoles, até a religião, seu poder sobre os mais pobres, passando pelos conceitos que permeiam loucura e lucidez. Estamira põe, mais uma vez, em cheque os limites e a complexidade que pode envolver o conceito da loucura. Sua lucidez é tão agoniante que se relaciona intimamente com a loucura. Mas Estamira trabalha no Jardim Gramacho. Não seria leviano afirmar que outros personagens, tão loucos, tão lúcidos e tão inventivos já passaram na história dos homens - pares e ímpares - e deixaram seus legados registrados nos códigos universais de cultura - literatura, música, etc. Para Estamira, segredada pela miséria, coube a Marcos Prado registrar-lhe a genialidade. Estamira. Esta mira. Mira. Em espanhol, mira é como "olha". Este olhar. Esta mira é um "este olhar" feminino. Par. Até porque, depois do filme, fiquei imaginando que olhar é realmente uma palavra feminina.
Ela é um grande exemplo de auto-valorização de sua subjetividade em meio a tanta desgraça e infortúnio, resistência de uma identidade que se fez forte nas suas circunstâncias.

Ao final, uma frase que me permitiu voltar pra casa. "Tudo que é imaginário, tem, existe, é."

Saravá, Estamira. Obrigado Marcos Prado.

http://www.estamira.com.br

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