3 de set. de 2007

Santiago

"- A vida é uma decepção?
- Sim, responde sorrindo."
(Viagem a Tóquio, Yasujiro Ozu)

Santiago é o resgate de um cinema possível, um cinema de pertencimento: colocar-se no que você faz, talvez o único caminho íntegro para qualquer coisa nessa vida sem sentido.

Entrevista na Bravo! feita por Armando Antenore:

BRAVO!: Você é um documentarista reconhecido que sempre zelou pela discrição. No entanto, em Santiago, resolveu se expor publicamente. Por quê? É uma autosabotagem?
João Moreira Salles: Não, talvez seja exatamente o contrário uma tentativa de me salvar, de me curar. Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não conseguimos recuperá-las. Para mim, que não acredito em nada, que não alimento nenhuma fé metafísica, a morte e a passagem do tempo são problemas imensos, obsessões que sempre me acompanharam. A diferença é que, com 30 anos, possuía apenas uma compreensão abstrata, intelectual do assunto. Agora, a compreensão se tornou concreta. Compreendo com as tripas. Intuitivamente, julguei que retomar o documentário inacabado me ajudaria a organizar o caos em que imergira. Há quem, no meio de uma tempestade existencial, resolva usar drogas, viajar a Lourdes e clamar por um milagre, conhecer o Dalai Lama ou praticar esporte. Eu resolvi fazer um filme.

BRAVO!: Em que sentido fazer o filme poderia contribuir para tirá-lo da crise?
Pelo fato de que Santiago também estava às voltas com a passagem do tempo, ainda que à maneira dele. As listas de celebridades que elaborava pretendiam imortalizar aquela gente toda. Santiago tinha uma concepção de vida e morte quase helênica e, por isso, bela. Para os gregos, um homem morre quando o esquecem e vive quando o lembram. Se Homero lembra, o guerreiro Aquiles existe. Se Homero não lembra, Aquiles deixa de existir. Assim, realizar um filme sobre Santiago significava realizar um filme sobre as questões que me assombram. Era um jeito inconsciente de me aproximar do problema com serenidade, sem tanto horror. Digo "inconsciente" porque, quando decidi resgatar as imagens, não fazia idéia do que iria encontrar ali. Não me recordava das cenas.

BRAVO!: E funcionou? Concluir o filme lhe trouxe paz?
Não por completo. Mas tirou muito do veneno, da pimenta que o problema destilava em mim. Só os loucos se tranqüilizam inteiramente com a consciência da finitude... Ao montar o filme, percebi um aspecto na figura de Santiago que me comoveu e que contribuiu para me apaziguar um pouco. As listas que ele transcreveu durante décadas não têm função prática nenhuma. Revelam-se inúteis, se levarmos em conta a noção de utilidade que costumamos atribuir às coisas. Entretanto, Santiago agarrou-se àquela inutilidade na esperança de engrandecer a própria vida. Deu sentido à sua existência dedicando-se a algo que não é nada. Agiu como cada um de nós deveria agir. Até porque, no limite, tudo o que produzimos acaba se mostrando tão inútil quanto as listas de Santiago. O próprio cinema é inútil.

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