13 de fev. de 2008

Viaduto

Agora estamos apenas nós dois aqui. Eu e esse incômodo generoso. Não o questiono. Nossa conversa, nesse exato instante, é puro desinteresse de palavras, abdicamos das falácias sobre compreensão. Amai o próximo como a ti mesmo. Talvez esteja aí a falência desse amor ocidental: já imaginaram quão sufocante é impor ao outro o jeito que você se ama? Como acolher a diferença? Como permitir brechas para que o outro consiga criar e recriar novas possibilidades nesse amor que está sendo compartilhado. Ficamos pensando sobre isso por horas. Agora, apenas nos silenciamos. Foi no viaduto da Doutor Arnaldo que nos encontramos. Gosto de revisitar lugares por onde já filmei. Ali fiz meu primeiro vídeo em São Paulo, com uma morena de "ancas largas" dançando no canteiro central. Dessa vez, um novo encontro. Um vulto. "Por quê?" - um grito feminino. Pessoas aglomeram-se. Apressei o passo e me aproximei. Lá em baixo, estava um senhor, que não deveria ter mais do que 60 anos. Nunca mais aquela imagem sairá da minha cabeça. Com esforço, consegui desviar o olhar. Um resto de agonia, movimentos leves, talvez os últimos de uma vida. Um sangue sujo de asfalto. Quando olhei para o lado, o encontrei. Não nos cumprimentamos, eu já sabia que iria voltar pra casa com ele. Com esse incômodo. Nas primeiras quadras, ainda tentei rotulá-lo ou encontrar um apelido fácil para chamá-lo. Por quê o suícidio nos incomoda tanto? Lembrei das pessoas ali no viaduto. Depois fui lembrando das várias formas que o suícidio aparece, sempre como algo incógnito e de alguma maneira, ainda que indiretamente, depreciativo, como uma fraqueza ou algo abominável, absurdo. Decidir morrer é absurdo. O incômodo me acompanhava.

Acabo de realizar a montagem de um documentário intitulado "Sobreviventes". E nesse momento não me sai da cabeça aquele senhor e seu sangue no asfalto e a sua decisão sobre viver: morrer. A liberdade absoluta só existe em momentos limites, situa-se em certa altura, no filme. Agora, sentado ao lado desse incômodo, tento me aproximar dessas pessoas que preferiram eternizar essa liberdade absoluta. Um infortúnio, uma falência, uma doença, uma decepção amorosa, um ato político. E talvez não seja apenas uma questão de poder sobre sua própria vida ou livre-arbítrio. Quantas pequenas mortes são necessárias para construir a definitiva? No tropeço das contas, uma antecipação. Morrer é algo que dispensa comentários.

Decidir morrer compensa uma vida inteira de comentários?

O incômodo compartilhou comigo uma idéia para um filme ou algo parecido: histórias compostas desses momentos que antecedem o suícidio. Um filme feito de diários das últimas semanas, de cartas de despedidas, de caminhadas silenciosas pelos locais escolhidos para dar-se fim.

Fiquei amigo desse incômodo.

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