17 de jun. de 2010

Aipim

Aipim curava os meninos com música. Isso, digo eu, que insisto em adesivar bonito o que nasceu sem intenção pra vestir-se com cola. Ele surgiu de uma família de músicos, dos tipos diversos, daqueles com escola até os descolados. Mas ninguém falava "música". Existe um olhar dentro da família de Aipim que significava isso. O olhar anunciava e o corpo mexia bonito, de leve, rasteiro, introduzindo a primeira intenção de dança. A dança é o corpo sendo música. É no corpo que a música faz trampolim. E é sobre ele que ela desce quando volta do vôo.
Um menino chegou desavisado com a doença de não gostar do seu pai. Todos diziam que era doença incurável, maldita, e pior falando, era uma lepra calibrosa que botaram no menino, como se ele fosse a origem e o sintoma da desgraciosa doença. Aipim respira um ar pequeno, possui uma humildade quando divide o ambiente com mais alguém. O menino chegou querendo quase não precisar mais existir. Como se ele tivesse passado a infância inteira correndo de esconde-esconde e acabara de chegar. Ainda guardava um pouco do cansaço da primeira vez que chorou na vida. Aipim passou a mão na nuca do menino e disse: Você gosta de amanhã?
O menino tinha tudo para nem entender. Mas nem entender já era demais pra ele. O menino respondeu: Quando eu penso que amanhã não vai ter pai, gosto de verdade.
Aipim fez o olhar. Iniciou a dança. E compartilhou com o menino um sonzinho, que começava simples na boca, movia pelos braços, que pediam um batuque, desses de leve.
"Amanhã nunca tem pai. É sempre filho. Mas diga aqui entre nós todos dois - Tem palavra esse desgostar?"
O menino mostrou umas feridas de sempre. De ontem, anteontem, de anos atrás. É de sempre antigo, ainda há o de sempre que quer ser.

Aipim batucou um pouco mais. E finalizou:

- Ainda te sobra um bom punhado de amanhãs pra serem gostados sem feridas. A dor parece que vem pra aquietar a gente. Mas é traquinagem dela. A dor vem é pra gente pegar impulso.


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