28 de out. de 2005

antiga história reencontrada nos papéis

O corpo só dói, de verdade, uma vez na vida. As outras dores apenas compõem a história. Era esse o ensinamento de Elias. Nunca satisfeito fui. Deveras voltei. Nem todo amor veio para amar, explicava-me. Há os amores que vieram para isso, aí. Então apontava com seu dedo sujo. Não era sujo de sujeira. Era sujo de si. Porque nada que sai de si pode ser considerado sujeira. Pensava ele. Nem os excrementos. Saiu de mim, gritava ele, fedido. Elias não era louco. Eu também não era louco. Elias era meu companheiro de nada. Quando não havia o que fazer, era Elias que compartilhava comigo, isso, esse angustiante tempo nulo. Não havia monotonia. Era suor, que pairava nos trilhos. Não saber para onde se vai, e correr, não saber o ritmo da música, e dançar. Elias disse que aquele amor não havia mais. Puxou um resto de ferida e me deu o cascão fazendo pose de nagô defecal. Senti, ali, naquele mísero e maldito instante: Iansã cuspiu meus pecados e tinha mais fome do que barriga. Catei meus miúdos como se fossem búzios. E pedi para Elias decifrar pela língua de gente ignorante. No caso, de gente eu. Pedi para não enrolar nos detalhes. Esse canto que embebeda. Me conte desse amor que não se ama. Elias ficava lindo quando falava de maneira com sabedoria. Mas Elias só foi lindo aquela vez na vida. Eu chorei da sua lindeza. Quando ele abriu a boca, já havia até redemoinho na lágrima. E continuou. Nem todo amor veio para amar. Parece até uma coisa distante de entender. Mas é perto, de tão simples. Existe sim o amor que não consegue amar. O amor que não consegue. O amor que é incapaz ou incompetente. O amor que é derrotado antes de levantar a mão. O amor que é desafinado mesmo sem nunca ter aberto a boca. O amor que está ali, quieto. E só se sabe amor, porque mesmo quase inexistente, é inconfundível. Está lá. Bebendo com Deus a cachaça da saudade do que nunca virá.

04.03.2003

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