25 de jul. de 2007

primeiro instante

Este é um homem pequeno, que demora para escolher uma camisa que não chame muito a atenção, mas que tenha um certo combinar com a calça. Ele cria critérios estranhos para esse combinar - se a calça é aquele jeans presenteado ainda na epóca em que seu armário era uma simbiose entre as possibilidades financeiras de sua mãe e o seu desejo rebeldezinho, então seria necessário uma camisa com cores familiares, com alguma textura esperançosa, tanto para balancear com a rebeldia adolescente da calça, quanto para reconectar-se com sua juventude, sua família, criar um contexto de memória da sua saudosa mãe. Este é um homem pequeno e muito próprio dos outros dessa estatura, não sabe lidar com graça a esse tipo de composição do biotipo. Obviamente ele sabe três ou quatro boas piadas que fazem alusão a possíveis virtudes dos homens pequenos em relação aos demais. E ele tem boa sabedoria para fazer bom uso dessas poucas piadas de modo a não esgarçá-las. Mas, em resumo, isso é uma questão fundante em sua auto-estima. E o torna um homem incomodado. Ao tomar consciência de sua situação de 'incomodada em relação ao mundo', tentou num primeiro momento se engajar a alguns movimentos sociais, três partidos políticos (um de extrema esquerda, outro meia-esquerda e o último era quase um gândula das ideologias), participou de alguns fóruns, grupos de estudo, sites, etc. e chegou a escrever num blog onde ficava dando referências sobre contracultura. Alguns anos depois percebeu, não com pouco custo, desolação e desespero, que em fato ele se tratava de uma espécie diferenciada de homem incomodado. Ele simplesmente era incomodado. Parece díficil explicar isso, como alguém pode ser simplesmente incomodado, então eu não vou usar nenhuma outra ilusão semântica ou metáfora, mas apenas citar situações. Não pelo didatismo, mas para encurtar esse relato. E provavelmente, você reconhecerá facilmente esse tipo. Correndo o risco desse reconhecimento referir-se exatamente a este homem que relato, pois não se tem ciência de um número muito grande desses. No cinema, ele é aquele sujeito que faz cara feia para qualquer barulho: o mastigar da pipoca, o canudo da coca-cola, o abrir daquele pacote de mm's. Com algumas variáveis, além da cara feia, ele pode vir a balbuciar reclamações, e a depender da disposição em que ele se encontre, até um grito anônimo pedindo silêncio é possível. No show de música, ele é aquele sujeito que reclama das pessoas animadas que cantam (com muita animação mas normalmente pouca afinação) e acabam impedindo que ele escute a pureza da voz do artista no palco. Dependendo da sua disposição, caso preserve algum anonimato, ele costuma soltar frases como "eu paguei para ouvir a bethânia", ou "ele não precisa de backing vocal". No restaurante, ele costuma fazer pedidos repletos de exceções e especificidades fora do usual ou do cardápio, e conseqüentemente fica insandecido quando qualquer uma de suas exigências não são atendidas, por esquecimento ou inviabilidade. Existem outras situações, só que mais íntimas, que deixarei para relatar num outro momento. Nesse primeiro instante, esse relato propõe-se apenas a constatar este homem pequeno, colecionando um pouco dos seus tropeços, no intuito de conseguirmos em algum momento, uma maior compreensão sobre sua trajetória.

Cordialmente,
Outro pequeno homem.

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