11 de mai. de 2008

antes do princípio das coisas


"A questão não é saber se o amor nos aconteceu. Isso é tão relativo que o silêncio é melhor. Percebe-se melhor. Naqueles dias eu achava que não éramos nada, tu e eu. Podíamos dormir juntos. Podia sentir o teu suor sobre o meu peito, os teus ruídos na casa de banho, a forma como mastigas a pastilha elástica, elegante, por vezes entreabrindo a boca num sopro que se aproxima de um suspiro. Podíamos rir e chorar, contar as desventuras da adolescência, as maldades paternas, tudo. Podíamos sem consequências, porque nada do que te disse era verdade e, por isso, me poupava nas palavras, para não te castigar com tantas mentiras.
Tudo o que passámos, naqueles dias, não era definitivo, não tinha coordenadas futuras, seria, por fim, o crescendo que iria morrer de repente. Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor iria desfazer. A ilha congelada no nosso abraço. Nos teus pensamentos era tudo o que fazia sentido. Eu tinha um prazo. Uma vida à minha espera, um regresso feito de poucas memórias. Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.
Sabia exactamente o vermelho de sangue que te iria escorrer da alma, como uma tinta, como um salpico de dor demasiado forte para o teu corpo magro.
Não tenho coração, pensava nas noites em que ficávamos a olhar o reflexo da lua no atlântico.
Tu contavas a história do duende prateado que tem de acender as luzes todas do mar da tranquilidade. Ele que prometeu ao sol que pode dormir sossegado. Haverá sempre uma luz para espantar as coisas más. Quando me fui embora, não deixei morada. Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber."

morder-te o coração é uma pequena caixa de ferramentas para afetividade defeituosa. Mas essas pequenas chaves de fenda em forma de palavras não irão consertar-te em nada: surgem para inutilizar-nos de nós mesmos, um pouco, ainda que por poucos instantes.
No vigor da escrita da portuguesa Patrícia Reis, não há como puxar o ar, num desejo do fôlego, sem que junto não entre para os pulmões esse invisível - porém tão sentido - frescor da comoção de amar. Independente do contexto em que se esteja - casado, sofrendo, solteiro, apaixonado, vadio - as histórias entrecortadas de pequenos relatos - ele e ela, vão se encaixando e encaixotando-se sem piedade de nos abarcar. Penso que há ai um apontamento para ressignificar a dor amorosa - que não está somente nos corações partidos, mas da falta de inteireiza que tem nos afligido nesses tempos.
Uma surpresa. O livro é impecável, nas cores, na capa, nas páginas com pausas negras. Na contracapa, sorri debochando o aviso que Agualusa faz: "Este (pequeno) livro é precioso (e raro) e deve ser manuseado com cuidado: contém emoções."


"A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer. A felicidade tem que ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que me não falta nada, quase nada."
Em nome da terra, Vergílio Ferreira (citado no livro da Patrícia Reis)

foto: Tiago Lima

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