1 de ago. de 2007

machado

Xangô está com seu machado apontado para dois passarinhos inscritos na parede, e apesar da sua face valente de quem, a qualquer momento poderá lançar cortante sua arma, ele permanece, como se tivesse inventado uma simplicidade na coragem quente dos seus olhos. Bebo mais um gole de coca-cola e me sinto novamente mundano, mesquinho, rídiculo, transitório. Tenho essa relação de íntima desgraça com essa bebida negra, ela me faz cair na real. Eu não escapei. Não adiantou aquelas tardes vendo ra-tim-bum, os pais comunistas, a escolinha de vanguarda, as poesias juvenis e esperançosas, a detestável e nutritiva sopa durante as noites. Adiantou para me atrasar. Nem piedade alguma caberia naquele jeitinho sensível, sobrevivendo aos ataques dos meninos-machos torcedores do bâea, derretendo-se precocemente na maciez das meninas ilustradas do colégio. Mais um gole desse líquido irritantemente gaseificado. Essas idéias cheias de bordas coloridas, esses abraços apertados, aquele papinho inteligível sobre assuntos aleatórios. Assim, olhando, ninguém dá nada. Eu dei minha vida inteira, e ainda assim, é pouco. Corroendo vida a dentro, a coca-cola reconecta-me com minha ausência, com meu abandono. Desenhei na mão, num inverno estranho, um mapa para chegar naquela casa. Aquela cidade, essa cidade, aquela estranheza, essa estranheza. Lembro de quanto temi o suor apagar minha mais fiel instrução para chegar naquela casa, a casa, não há mais casa. Em alguma estação do metrô, deixei o futuro promissor partir. Na baldeação equivocada, quase não me despedi do menino precoce cheio de apontamentos para sabedorias. Talvez a fraqueza de ser órfão de mim na perda do avô - alguém com olhos de reinvenção para admirar-se no meu próximo passo. Invejava quase-amores. Eu nunca fui quase feliz. Bom colecionador, não tardaria a completar alguma inteireza. Eu me abandonei primeiro, para não correr o risco de ninguém mais o fazer. Orgulhoso, finjo desistência de reencontrar-me. Bebo mais um gole dessa pequena desgraça líquida de rótulo avermelhado. Sinto a trajetória negra tentando me estragar. Aqui dentro, os estragos se reconhecem.


Xangô continua imóvel. Minha sorte é faltar um machado desses. Meu azar, faltar essa inquietante sabedoria, que apenas permanece.

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